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As principais caraterísticas morfológicas do dispositivo grupal

  • Foto do escritor: Raquel Mazo
    Raquel Mazo
  • 31 de out. de 2024
  • 11 min de leitura

KAËS, René. Las principales características morfológicas del dispositivo grupal. Tradução: Jacques Algasi. Actualidad Psicológica, Buenos Aires, junho de 2003.

Tradução livre do espanhol para a lingua portuguesa: Raquel Mazo


 

O dispositivo psicanalítico grupal possui características morfológicas e dinâmicas notáveis. Várias pessoas estão reunidas simultaneamente, no mesmo local e num espaço psíquico comum e partilhado: são convidadas a falar livremente sobre o que querem dizer. O que elas têm em comum é o grupo (na sua condição de objeto psíquico), o analista e a palavra (ou qualquer outra “mediação” proposta como meio de acesso aos processos psíquicos). O que eles têm em comum é também o que compartilham: a relação única de cada um com esses objetos comuns. Parte importante da economia é investida no esforço de reduzir o que é compartilhado em benefício do que é comum, ou vice-versa, de acordo com o desenvolvimento do processo individual dentro do processo grupal. Neste caso há uma diferença essencial e constante no que diz respeito ao processo psicanalítico da cura típica, especialmente no que diz respeito às modalidades e conteúdos das transferências, dos processos associativos e da interpretação. Precisamos destas características:


  1. A precedência do analista ou analistas os coloca numa posição imaginária de fundadores do grupo, e mobiliza nos membros do grupo o complexo intruso e o complexo fraterno. Embora seja verdade que o analista (ou o dispositivo analítico) precede sempre o analisando, na situação de grupo esta precedência inscreve-se numa relação particular com a pluralidade e o grupo reunido por um analista. Um vínculo é estabelecido com três aspectos: um vínculo entre cada um dos membros com o analista, entre cada membro com um ou mais membros do grupo e entre cada membro com o grupo como um todo. Desta particularidade decorrem algumas consequências fundamentais: as formações e processos psíquicos mobilizados numa situação de grupo inscrevem-se desde o início no marco do efeito “do outro, na sua qualidade de modelo, apoio e adversário” (Freud, 1921), mas acrescentaria também no marco do efeito do outro em sua qualidade daquele que nos precede. O grupo mobiliza-nos no contexto das relações geracionais e das relações fraternas, aos níveis arcaico, pré-edipiano e edipiano. Quando se trata de dois ou mais psicanalistas que coordenam a condução conjunta do processo psicanalítico grupal, outros efeitos ocorrem no campo das transferências e dos processos associativos, tema sobre o qual retornarei com mais precisão.


  2. A pluralidade provoca a sinergia de efeitos psíquicos e a construção de um aparelho psíquico comum e compartilhado. No contexto do dispositivo plural, cada um se depara com um encontro múltiplo e simultâneo com mais de um sujeito. Esses outros são outros tantos objetos de investimentos pulsionais e de representações: portanto, produz-se uma excitação interna e mútua compartilhada que se mantém, obrigando cada um a se defender contra uma fonte e uma intensidade de energia, que, especialmente na fase inicial do grupos, escapa a qualquer tentativa de localização e controle. Dessa forma, desenvolvem-se situações de transbordamento potencialmente traumáticas, na medida em que os dispositivos para frear a excitação são insuficientes. Algumas das condições que participam da formação do inconsciente original são assim reunidas, se aceitarmos a hipótese de Freud segundo a qual o original é provavelmente constituído “por ocasião da ruptura da barreira protetora frente a excitação”.


    Pelo fato da pluralidade, os integrantes do grupo lançam mecanismos de defesa conjuntos e compartilhados. Além das identificações urgentes descritas por Missenard a partir de 1972, uma certa renúncia às realizações pulsionais é tacitamente aceita, sem que ninguém se dê conta. Cada um dos membros, e o grupo como um todo, contribuem para produzir uma certa organização inconsciente das áreas psíquicas nas quais o vínculo é possível. Desde os primeiros momentos da vida dos grupos, a repressão, a desmentida ou a clivagem de representações perigosas contribuem para a produção do inconsciente num espaço comum e partilhado. Afirmamos que esses mecanismos de defesa são constitutivos da realidade psíquica do grupo e, no contexto grupal, participam do mesmo vínculo com o grupo. Encontramos os efeitos desses mecanismos no conteúdo das modalidades de transferências e de trabalho associativo: os conteúdos inconscientes retornam de formas únicas para cada um dos membros, mas também através de produções psíquicas do grupo como um todo. A pluralidade e o seu tratamento são geradores de processos de agrupamento: transformação da multiplicidade numa forma comum, através do contorno do objeto comum unificador, e através dos embriões de uma delimitação entre dentro e fora.


  3. O cara a cara reativa experiências primitivas adquiridas antes da linguagem. O dispositivo frontal, frente a frente, é uma característica que diferencia a situação grupal da situação paradigmática da cura clássica. Com a análise de Dora, Freud estabeleceu um dispositivo espacial formado de tal forma que o analista fica fora do campo de visão do paciente. A necessidade de recorrer às palavras, sem passar pela cena armada, abriu então caminho às representações das palavras e à cena fantasmática. Podemos nos perguntar se, nas condições que propomos, os sujeitos colocados frente a frente na situação grupal não seriam convocados para um espaço e tempo pré-psicanalítico. Não estou convencido de que o tema tenha sido bem colocado no que diz respeito à questão subjacente, uma vez que esta afirmação também demonstra certas declarações a priori. Hoje em dia considera-se que determinadas análises podem ser conduzidas recorrendo ao frente a frente, e em alguns casos a análise é possível somente com este dispositivo. A experiência do grupo apresentou argumentos válidos para a cura: a clínica nos ensina constantemente que se o dispositivo frente a frente mobiliza as modalidades de “comunicação” não verbal e os efeitos de clivagem, de dominação e de sedução, só a manutenção da regra fundamental e a interpretação das transferências no registro da palavra garantem os meios para realizar um trabalho psicanalítico.


    O fato de que no dispositivo grupal a percepção e a recuperação das percepções na representação inconsciente serem realizadas sob a primazia do visual torna-o diretamente responsável pela reativação de experiências primitivas adquiridas antes da linguagem. Neste caso, é uma experiência do inconsciente que se espalha em vários registros: o das pulsões arcaicas de dominação, o das pulsões libidinais, narcisistas e tanáticas, o da especularidade e da figura do duplo ou do múltiplo, e dos fantasmas originais e das identificações histéricas, e o da descoberta da exterioridade do objeto e da prova da realidade em relação à percepção, etc...


    Fedida sustentou legitimamente que o problema do frente a frente é antes de tudo antropológico, antes de se tornar metapsicológico. Uma antropologia presencial tem a tarefa de descrever a localização e as atribuições dos locais num conjunto: onde se colocar? O frente a frente e a localização no grupo não são apenas um problema de conformação espacial, mas também um problema de atribuição e escolha (escolher e ser escolhido) em relação a um lugar. É nesse sentido que a problemática da atribuição e do lugar pode ser considerada a problemática originária da psicanálise, “antes” do problema da sedução, ao qual está relacionado.


    Os efeitos do frente a frente nos movimentos de transferência e contratransferência, e o controle desses movimentos em uma situação de grupo, não são insignificantes, mesmo que seja em termos de sua localização numa “visão” de expressões faciais e posturas generalizadas. Faltam estudos que avaliem esses efeitos no processo psicanalítico.


  4. A pluralidade de discursos leva à interdiscursividade dos processos associativos. Os enunciados de palavras (e mais genericamente os significantes corporais: mímicas, posturas, gestos) inserem-se numa pluralidade de discursos que se ordenam segundo um duplo eixo sincrónico e diacrónico. Quando os membros de um grupo falam no processo psicanalítico do grupo sob o efeito da associação livre, seus enunciados estão sempre "situados no nó de uma dupla cadeia associativa: aquela que é dirigida pelas representações individuais dos objetivos e que é estruturada pelos principais organizadores das associações. Com efeito, devemos admitir que os enunciados que se sucedem no grupo, embora provenham de enunciadores diferentes, formam um conjunto de enunciados determinados pelas representações inconscientes organizadoras dos vínculos grupais A interdiscursividade organiza os enunciados e contextualiza os enunciados, segundo esse duplo eixo. Isso resulta em um modo de funcionamento do processo associativo diferente e mais complexo daquele que opera no tratamento individual.


  5. A implementação do dispositivo figurativo utiliza a combinatória e a economia da pluralidade de forma privilegiada. Portanto, serão privilegiados os mecanismos da dramatização e da “encenação” do múltiplo e do individual, da parte e do todo, do fato de ver, de ser visto e de fazer ver. Os processos primários de condensação ("um por todos"), de deslocamento de um elemento para outro e de difração (um elemento que se representa em vários elementos), que são mobilizados no sonho, nos sintomas e nos chistes também são mobilizados no aparelho psíquico grupal, de maneira específica.


O processo psicanalítico e a mediação estruturante das regras


Essas características do dispositivo grupal influenciam o processo psicanalítico que é produzido na medida em que seleciona a matéria psíquica que será objeto do trabalho psicanalítico. Um processo psicanalítico é lançado na medida em que é capaz de revelar as formações, processos e efeitos psíquicos do inconsciente, e de apoiar a sua apropriação por um sujeito ou grupo de sujeitos. A situação psicanalítica grupal é organizada para que ocorra um processo psicanalítico, moldado de tal forma que os efeitos do inconsciente se manifestem nas transferências e nos enunciados associativos de seus membros. A regra fundamental é o operador do processo psicanalítico.


A regra fundamental em uma situação de grupo


As regras de estruturação a partir das quais se desenvolvem cada situação e cada processo psicanalítico operam na experiência psíquica colocando em perspectiva o objeto e a meta da psicanálise. Lembrei-me que a regra fundamental se baseia na certeza de que a realidade psíquica e o desejo inconsciente são suscetíveis de serem ditos, dirigidos a outro, e por efeito de transferência, transformados em apropriação subjetiva consciente. É essa regra que se enuncia como o meio utilizado pelo trabalho psicanalítico em situação de grupal. Tem como correlato a abstinência de qualquer relação que não seja via palavra entre os participantes e os analistas no contexto das sessões. Promove a discrição no que se refere à experiência íntima, comum e compartilhada. Promove o fato de poder regressar às associações grupais aquilo que pode ser trocado, fora da sessão, com relação à experiência na sessão envolvida no grupo. Para que o processo psicanalítico seja colocado em ação em uma situação de grupo, a regra fundamental deve ser declarada, aquela que mantém a exigência de passar pela palavra no desfiladeiro da livre associação, excluindo toda satisfação substituta. Todos os elementos da regra fundamental são encontrados nas relações de complementaridade solidaria, e é em conjunto que tornam possível a transformação dos processos psíquicos envolvidos no sofrimento e na psique perturbada. Em virtude da regra fundamental, no grupo como como na análise individual, que a transferência é analisável: a regra mobiliza resistências no que diz respeito ao devir consciente das fontes inconscientes do sofrimento; pela referência que constitui, revela a busca de satisfações substitutas, mas também abre caminho para o processo analítico. As formas de grupo das transferências e resistências são determinadas pela morfologia do dispositivo. Isso significa que, ao afirmar seu papel estruturante na situação e no processo psicanalítico, produz efeitos específicos no tratamento e no grupo.


O grupo é o lugar de emergência das configurações particulares das transferências


Na situação psicanalítica grupal, assim como na cura individual, tudo o que nela acontece remete-se à transferência: a transferência e sua análise conferem uma qualidade radical ao processo psicanalítico, especialmente na análise das resistências ao processo.


Uma consequência da pluralidade e da multiplicidade é que o grupo é o lugar de emergência de configurações particulares da transferência: dos objetos da transferência, da tópica, da dinâmica e da economia da transferência. As transferências, multilaterais, são difratadas nos objetos predispostos a recebê-las no grupo: analistas, membros do grupo, grupo, contexto externo do grupo. Para um mesmo sujeito, essas transferências estão interligadas: a sua dinâmica e economia constituem um dos objetivos do trabalho de interpretação.Lembrando que não se trata de uma dissolução da transferência, mas da sua difração e da reatualização das conexões das transferências. Com efeito, o trabalho em grupo permite uma atualização das “conexões transferenciais” (Freud, a propósito da análise de Dora), e portanto permite localizar as relações que o sujeito mantém com os seus objetos inconscientes, bem como as relações entre esses objetos. Além disso, os membros de um grupo têm entre si uma relação diferente daquela que cada um manteria com seu analista, numa cura individual: as transferências são distribuídas ou difratadas pelos membros do grupo como um todo. Para cada membro do grupo considerado em sua singularidade, o dispositivo grupal permite difratar na cena sincrônica das conexões grupais com objetos de transferências constituídos em diacronia. Essa característica das transferências em situação grupal destaca uma das contribuições específicas da perspectiva grupal para a compreensão da transmissão psíquica: o desdobramento na sincronia da transferência, dos nós na diacronia realizados no interior da intersubjetividade.


O fato de que o analista, pela necessidade morfológica do grupo, tenha que ser um objeto de transferência compartilhado por vários sujeitos, e o fato de não ser o único objeto da transferência, define as condições particulares da contratransferência. A precedência do analista em uma situação de grupo, por ser um conjunto montado pelo analista, confere desde o início a esta precedência um valor imaginário de fundamento: mobiliza ipso facto a fantasia do lugar de origem e a problemática do originário.


A intertransferência e a análise intertransferencial


Quando vários analistas estão associados no trabalho psicanalítico numa situação de grupo, eles devem levar em conta os efeitos transferenciais produzidos pela sua escolha de trabalhar juntos; além disso, devem trabalhar no que diz respeito aos vínculos que mantêm entre si e às suas transferências mútuas; fundamentalmente, eles têm que desemaranhar os efeitos transferenciais no grupo induzidos pela contratransferência que vivenciam. O campo transferencial e o campo contratransferencial que se desenvolvem numa situação de grupo exigem então que se leve em consideração as intertransferências.


A intertransferência é o estado da realidade psíquica do analista na medida em que se veja induzido pelos vínculos que mantêm na situação grupal. A intertransferência é especificada pelo fato de o analista transferir sua própria organização intrapsíquica para seus colegas, pelo próprio fato daquilo que é induzido pela situação grupal: simultaneamente, pelas transferências que recebe e pelas próprias disposições contratransferenciais.


A análise intertransferencial é a elaboração exigida pela função psicanalítica nesta modalidade do dispositivo grupal. Esta análise refere-se aos posicionamentos transferenciais atribuídos por cada analista ao outro analista na situação de grupo, e aos efeitos contratransferenciais de cada um deles sobre o outro: tal análise é condição necessária para a elaboração da interpretação.


A exigência do dizer e os processos associativos estão sujeitos a condições particulares


Salientei que a pluralidade dos discursos, o frente a frente e a sucessão de enunciados singulares produzem um conjunto discursivo original, no nó de uma dupla cadeia associativa, a de cada sujeito considerado de forma isolada, e a do conjunto formado pelo grupo. Em todos esses níveis, o processo associativo carrega a inscrição dos efeitos do inconsciente. Os processos associativos organizam-se a partir da tríplice fonte de repressão, desmentida ou negação: uma dessas fontes é específica de cada sujeito considerado na singularidade de sua estrutura e de sua história; a outra fonte é produzida pelos analistas no contexto da situação do grupo, dentro dos vínculos que mantêm com o grupo; e a terceira nasce das relações entre os membros do grupo para construir os vínculos que mantém com o grupo. Cada um desses conteúdos do inconsciente está ligado de maneira original e retorna nas modalidades da transferência e nas vicissitudes do trabalho associativo. A partir da interdiscursividade que organiza os enunciados e que contextualiza os enunciados, evidencia-se um modo de funcionamento do processo associativo mais complexo do que aquele que funciona no tratamento individual.


Utilizei o conceito de polifonia no sentido em que aparece em Bajtín para enfatizar as ressonâncias das vozes e a transformação dos discursos através da sua montagem, uma vez que esta transformação não existe sem estas ressonâncias. Uma associação não existe de outra forma senão através de outras associações, na dupla rede constituída pelas associações de um sujeito e pelas que provêm de outro ou de vários outros. Cada um é interlocutor e estrangeiro no grupo, e isso constitui o estatuto do outro: ele é parte de mim e parte de algo externo a mim. E é entre estes discursos que emerge o meu próprio discurso, que reconheço como meu, e que por um lado me divide e permanece estrangeiro. Esta concepção da polifonia do discurso estende-se assim a uma concepção do sujeito entramado na interdiscursividade e trabalhado por ela.


A interpretação é função da situação psicanalítica do grupo: da interdiscursividade, da polifonia e das modalidades de transferência


A posição clássica, numa situação psicanalítica grupal, é interpretar apenas o processos de grupo, excluindo toda interpretação individual. Esta concepção é consistente com a consideração da realidade psicológica característica do grupo, e é esta realidade que é conveniente interpretar em suas dimensões resistivas social e transferencial, e não a realidade psíquica do sujeito. Proceder de outra forma seria colocar o sujeito em uma situação insustentável, que seria substituir um psudo-contexto de cura de individual para o contexto do grupo. Em grupo, convém interpretar “no nível do grupo”, a ideia é que cada membro do grupo se encarregue da parte que lhe toca nesta interpretação.

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