Casal, encontro e reconhecimento
- Raquel Mazo
- 19 de dez. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 31 de out. de 2024
“Uma ideia é verdadeira quando ainda não foi imposta.” Eugênio Ionesco

Deleuze propõe: “O reconhecimento é o oposto do encontro”. Um encontro (amoroso, revelador, apaixonado) não é passível de explicação nem se articula com percursos conhecidos, ao passo que conhecer e reconhecer, sim.
No encontro predomina a conexão, enquanto no conhecimento e reconhecimento predomina a associação. E, quando predomina razão e associação, estas podem sufocar a possibilidade de conexão.
Essa luta entre encontrar-se e reconhecer-se é brilhantemente apresentada no quarto e quinto atos da peça O Cantor Careca, de Eugène Ionesco (1950), autor romeno-francês considerado um mestre do teatro do absurdo, que mostrou que os absurdos podem ser uma forma privilegiada de revelar verdades.
No quarto ato de La Cantatrice Chauve, dois personagens que Ionesco chama de "Sra. Martin" e "Sr. Martin" sentam-se frente a frente, sem falar, na sala da casa dos Smith, alguns amigos.
Eles sorriem timidamente. Com uma voz lânguida e monótona, o Sr. Martin diz à Sra.:
– Com licença, senhora, mas me parece, se não me engano, que já encontrei em algum lugar.
Ao que a Sra. Martin responde que também lhe parece que já o encontrou em algum lugar.
– Em Manchester, por acaso? Ele responde.
– É muito possível. “Nasci na cidade de Manchester”, responde ela, “mas não me lembro muito bem, senhor, nem saberia dizer se o vi lá ou não”.
O Sr. Martin responde envergonhado:
– Meu Deus, que curioso! Também sou originário da cidade de Manchester!
– Que curioso! - os dois exclamam quase em dueto.
E o espanto aumenta quando se descobre que ambos tinham saído de Manchester há mais ou menos cinco semanas num comboio de segunda classe, embora – como o próprio Ionesco esclarece no texto, reforçando o clima absurdo – na Inglaterra não exista segunda classe. Além do mais, como o Sr. e a Sra. Martin logo descobrem, naquela viagem de Manchester a Londres eles estavam não apenas no mesmo carro, mas também no mesmo compartimento.
– Que curioso! - exclama a Sra. Martin novamente. Mas ainda não me lembro de você.
O mesmo acontece com o Sr. Martin, embora já tenham concluído, com base no número do assento que ocuparam naquela viagem, que não só estavam no mesmo carro, mas que viajavam um em frente ao outro.
O clima de estranheza aumenta quando ambos, conforme vão elucidando à medida que continuam conversando, percebem que moram na Bromfield Street, em Londres e, como se não bastasse, no mesmo prédio. Mas, mesmo assim, não se lembram de terem se visto ou reconhecido naquela rua ou naquele prédio.
“Meu apartamento fica no quinto andar, é o número 8, querida senhora”, diz o Sr. Martin em um dos momentos mais culminantes da cena.
E a senhora Martin, atônita, responde:
– Que curioso, meu Deus, que estranho! E que coincidência! Também moro no quinto andar, no apartamento número 8, caro senhor!
Chegam a lembrar a disposição dos quartos e dos móveis do quinto andar do apartamento 8 da Bromfield Street onde ambos lembram que moram, mas mesmo assim, apesar do enorme conjunto de coincidências, não se reconhecem nem se lembram em que situação, se houver, eles poderiam ter se encontrado. “É estranho”, dizem a Sra. e o Sr. Martin.
– Então moramos no mesmo quarto e dormimos na mesma cama, querida senhora. Talvez tenha sido aí que nos vimos! O Sr. Martin insiste. E acrescenta: tenho uma menina, minha filhinha, que mora comigo. Ela tem dois anos, é loira e muito fofa, com um olho branco e outro vermelho. O nome dela é Alicia.
Sra. Martin - já francamente surpresa - responde que também tem uma filha de dois anos com um olho branco e outro vermelho, que também é muito bonita e que também se chama Alicia.
Segue-se um longo momento de silêncio... O relógio - diz o roteiro teatral - bate vinte e nove vezes (outra nota absurda: não há relógio que bata vinte e nove vezes).
Depois de muito refletir, o Sr. Martin levanta-se lentamente e, sem pressa, caminha em direção à Sra. Martin, que, talvez surpresa com seu ar solene, também se levanta suavemente. Então, ele diz:
– Querida senhora, acho que não há mais dúvidas, já nos vimos, e você é minha própria esposa... Isabel, te encontrei de novo!
A Sra. Martin se aproxima do Sr. Martin, também sem pressa. Eles se abraçam sem expressão. O relógio toca uma vez, muito alto. O som do relógio – escreve Ionesco no roteiro – deve ser alto o suficiente para assustar os espectadores. Mas mesmo assim os Martins não ouvem. Nesse momento Isabel exclama:
– Donald, é você, querido!
Eles se sentam na mesma cadeira, abraçam-se e adormecem. O relógio continua tocando muitas vezes. A cena IV terminou.
Todo o sistema de argumentação de Donald entra em colapso quando ele encontra o último obstáculo que aniquila a sua teoria. Apesar das coincidências extraordinárias que parecem ser uma prova definitiva, Donald e Isabel, não sendo pais da mesma filha, não são Donald e Isabel. É inútil para ele acreditar que ela é Isabel, é inútil para ela acreditar que ele é Donald: estão redondamente enganados.
Mas quem é o verdadeiro Donald? Quem é a verdadeira Isabel?" Talvez nem devêssemos tentar descobrir. As diferenças não são consumidas pelo conhecimento. Melhor é deixar as coisas como estão. Eles se encontraram apesar de acreditarem que se conhecem quase completamente.
Na cena VI, segundo as indicações do roteiro de Ionesco, “o relógio toca o quanto quer e, muitos momentos depois” (outra dupla de absurdos, os relógios não tocam o que querem e “muitos momentos” é uma incoerência), a Sra. e o Sr. Martin se separam e voltam aos assentos do início da cena IV. Depois diz:
– Esqueçamos tudo o que aconteceu entre nós e agora que nos reencontramos procuremos não nos perder mais e vivamos como antes.
O absurdo da situação que o senhor e a senhora Martin vivem, só pode ser entendido como significando que não se é quem finge ser e que a insistência em ser imutável é uma forma de acalmar as incertezas de mudança e ao mesmo tempo evitar futuros, bem como fazer ruir a possibilidade de gerar encontros possíveis.
Uma ligação deve passar por aquela mistura de apropriação e expropriação, e parece que a repetição diária da mesma coisa pode sufocar a possibilidade de um encontro. E, pior ainda, podemos não notar, e geralmente não percebemos, possíveis encontros que não aconteceram.
A intervenção inusitada de Mary demonstra que depois do encontro em que já se reconheceram como marido e mulher, as diferenças continuam a persistir, as diferenças que deveria deixar de lado, tolerar, continuar "como antes". Uma metáfora de que um encontro não pode ser reduzido a uma questão de identidades.
A verdade é que a única possibilidade de se encontrar é se perder, ou seja, deixar de acreditar que nos reconhecemos plenamente para que, quem sabe, surja um encontro ou uma incrível produção de vínculos.
Versão livremente resenhada e traduzida do texto: MORENO, J. Encuentro y reconecimiento. In: El psicoanálisis interrogado. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2016.
PSICOTERAPEUTA DE CASAL

Sou Raquel Mazo, psicóloga CRP 06/112414, mestra em psicologia, especialista em psicologia clínica e pós-graduanda em psicanálise vincular.
Atendo casais no consultório em Ribeirão Preto ou on-line em todas as cidades.
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